14 ENTREVISTA | SONIA BIBE LUYTEN E O PODER DO MANGÁ
setembro 20th, 2012 → 7:30 am @ Marilia Kubota
Em 2012, Sonia Bibe Luyten completa 40 anos de docência em História em Quadrinhos e Cultura Pop Japonesa. Pesquisadora pioneira do mangá na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, é autora dos livros ”Mangá, o Poder dos Quadrinhos” e “Cultura Pop Japonesa”, além de um dos fundadores da Associação Brasileira dos Amigos do Mangá, que viria a se tornar a Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustração - ABRADEMI. A pesquisadora ajudou e continua ajudando a desbaratar muitos mitos a respeito do mangá, como o de que não era tema para uma pesquisa acadêmica. Contrariando seus opositores, Sonia segue instigando polêmicas.
Por Marilia Kubota
Você foi a pioneira no estudo de mangá no Brasil e no mundo, com a publicação de um artigo na extinta revista Quadreca. Como foi o desbravamento desse campo ?
As HQs, no mundo todo, e o Brasil não é exceção, estão ligadas ao desenvolvimento econômico do país. No Brasil não há muita leitura de livro porque ainda não há condições plenas para pessoas de renda baixa ter acesso à escola, comprar livros . O livro é caro, R$50, R$ 60, até para a classe média. Com o boom econômico do Japão, nos anos 70, os jornais passam a ter edições de 10 milhões de exemplares diários e os mangás, igualmente, 1 milhão / semana. Dinheiro chamando dinheiro. Me chamou atenção a estatística, além de gostar também. Em Sâo Paulo havia a possibilidade de a gente ter acesso aos mangás japoneses, onde os japoneses os compravam, no bairro da Liberdade. Já existiam pesquisadores de HQ, mas mangá, especificamente, não.
Você teve alguma atração especial pelo estudo do mangá ?
No caso, a cultura japonesa me era muito familiar, eu gostava. Quando juntei o meu campo de estudos, que é Quadrinhos, com a produção de mangá no Japão , eu queria saber por que a tiragem era tão alta, por que a editoração era feita daquele modo. Comecei mais com perguntas pra poder pesquisar. Meu primeiro contato com o mangá foi na Liberdade, onde havia distribuidoras de revistas de mangá. Daí comecei a estudar como editavam, a categorização voltada para a faixa etária, sexo, etc. Foi a partir dessas perguntas é que eu comecei a pesquisar.
Porque você acha que antes nem um pesquisador se aventurou a estudar o mangá, no Brasil e no mundo ?
Por que ninguém se interessava em estudar algo que não era arte erudita. Na USP só se estudava artes como ikebana, shado, shodo, literatura, não arte pop. E o espanto era a pesquisa feita por não-descendente. Posso dizer que a partir do livro Mangá – o poder dos quadrinhos, que eu escrevi, nos anos 70, a visão sobre o tema mudou. Esse livro foi minha tese de doutorado, ramificou –se como ponta de lançar para muitos outros livros e estudos acadêmicos.
Um dos tópicos mais críticos de seu livro é quando você fala sobre a função social do mangá no Japão e no Brasil …
A função do mangá no Japão é de extravasamento. No Japão, por exemplo, a palavra otaku, que no Brasil está ligada exclusivamente aos animes, na verdade significa fã. No Japão, o mangá anime serve como válvula de escape para as fantasias dos fãs de todas as faixas etárias, principalmente adolescentes e jovens adultos. Criança não, porque até os 7 anos, criança no Japão pode fazer o que quer. A partir de 8, 9 anos, entra na adolescência e o mangá se torna uma válvula de escape de fantasia para fugir do rigor dos estudos. No Brasil, o mangá também é usado como entretenimento e leva à fantasia, mas esse não é o objetivo maior. Aqui, o fã de anime é considerado imaturo, sofrendo preconceito. No Brasil a fantasia pelo anime não é considerada válvula de escape à repressão social, porque existe o futebol, o carnaval, etc. E em geral o aficcionado de anime mangá não vai pra um estádio de futebol.
Então no Japão, o mangá exerce a função de controlar socialmente a população ?
Na minha opinião, é uma maneira de manter o status quo. Enquanto você pode dominar um povo onde se pode fantasiar e não tornar realidade – (no Brasil, através do futebol, no Japão, através do mangá anime , tudo estará bem, se na vida real todos seguem o mesmo caminho. No Brasil, se o Corinthians ganhar, se xinga, se bate, etc., mas segunda-feira todo mundo vai trabalhar. Dessa forma se alivia a tensão e existe um controle político sobre a massa. Em “Mangá, o poder dos quadrinhos”, eu falo que o mangá é o ópio do japonês. Por isso, no Japão ninguém queria publicar, em 1991, época em que foi lançado.Hoje talvez revissem essa posição. É muito difícil se olhar no espelho. Se alguém falasse que eu sou assim, assado, fala isso e aquilo, eu não ia gostar dessa imagem, ia quebrá-la. Ou aceitar. Com o país é a mesma coisa. Estudando anime e manga do Japão, eu pesquiso sobre o imaginário de uma nação. Ninguém gosta de ver essa reflexão, por não ter poder, não ter controle. O que povo fantasia é a sua carência, ou o que odeia e não pode explorar. Vou te dar um exemplo, no Japão. Não trabalho com mangá erótico nem pornográfico, mas vi e li. Por que na fantasia desses mangás tem sempre a figura da colegial ? Porque o homem adulto quer que a escola vá para o espaço, é o que não gosta.
E qual o lado positivo do mangá anime ?
No momento em que o lazer que o mangá anime proporciona e os fãs absorvem, ele entra em contato com outra cultura, ele já vai se modificar na recepção. O tradutor é muito importante, se não ele vai matar a história. Por exemplo, o gesto de apontar o nariz é eu (watashi). No Brasil, aprendemos uma serei de gestualidades graças aos anime , palavras, expressões que o fã de mangá anime traz para a cultura brasileira e por outro lado, muitos mangás anime são influenciados pela cultura ocidental . Hayao Miyazaki, por exemplo, se inspirou em várias fábulas do mundo inteiro para compor seus animes.
Você chegou a estudar a história do mangá no Paraná ?
O Paraná teve um significado muito grande no pioneirismo do mangá, por causa da Grafipar, que reuniu quadrinistas, como o Claudio Seto, o Paulo Fukuda, etc. Mas a Grafipar nos anos 70 passou desapercebida e os artistas mangaká produziram muito, sem que a crítica tenha lhes dado a devida importância. Esses artistas foram influenciados pela leitura dos mangás japoneses , eram nativos na língua japonesa, elaborando uma HQ no estilo mangá, com temas da cultura japonesa, compondo o mangá brasileira. Depois dos anos 60, 70, há um vácuo muito grande. Daí vem uma nova leva de desenhistas influenciados maciçamente pelo anime e mangá, como o Fábio Yabu, um bom exemplo que deu certo a partir da internet, com os Combo Rangers e depois para as sereias.
Qual a diferença entre os mangás produzidos nessa época e os contemporâneos ?Hoje a moçada mostra os quadrinhos para mim e perguntam o que eu acho. O desenho é perfeito, ficam treinando, copiam o traço é sempre bom. Falta enredo. E sem enredo a HQ não se sustenta. Então os mangaká hoje precisam aprender a fazer enredos. Precisa ter uma história que precisa ter um peso que sustente a curiosidade da leitura. Isso acontece porque o jovem está mais voltado para o desenho e não para o enredo. Ele não lê muito. Hoje existe crise de roteiro. Pra fazer um roteiro, o escritor precisa estar antenado com o mundo. Precisa ter um conhecimento geral básico sobre a humanidade, não só sobre desenho. É duro fazer roteiro, é como escrever um romance. Você precisa ter peso, é um dom. Acho as histórias um pouco fracas.
Que lembrança você tem de Seto e Minami Keizi ?
No ano do centenário da imigração japonesa, pudemos homenagear o Minami Keizi e o Seto com o troféu HQMIx. O personagem Samurai, criado por Seto, foi homenageado.Nesse encontro, na entrega do troféu, reunimos todos os mangáká. Fiquei feliz porque o Seto recebeu essa homenagem um pouco antes de morrer, o que me honra muito.
Você pode contar o que foi a Abrademi, da qual você foi uma das fundadoras ?
A Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustração nasceu de um grupo de estudos de mangá da ECA. Aí esse grupo, comigo, fazia pesquisas sobre mangá. Em 83/84, fizeram uma exposição. O objetivo da Abrademi era a difusão da cultura japonesa através do mangá, sem fins lucrativos. Mandavam boletim pro Brasil todo, faziam revistas. Eles foram, junto comigo, os pioneiros a abrir o mangá para o meio universitário.Hoje, em lugar dessas associações existem os animencontros, que tem objetivos mais comerciais.
E agora as pesquisas focam os animencontros?
O anime tem muito mais impacto na população jovem do Brasil do que o mangá, até por uma questão de preço. O mangá traduzido é preciso comprar, da editora JBC, Conrad, etc. O anime se faz download. A internet facilitou a exposição dos jovens a mais animes. O anime tem uma pentração maior do que o mangá.
Os animencontros são vistos com eventos estranhos pelo senso comum. Mas como pesquisadora você procurar compreender a mentalidade dos fás de anime ?
Muitas vezes, na casa, um menino gosta de anime. Se ele está sozinho na casa, de repente na internet ele acha no RJ ou em Sidney, na Austrália alguém que gosta de anime, eles se juntam em comunidades onde não se sentem sozinhos, sem o estranhamento dos outros e formam uma comunidade. Com isso, conversam sobre os seus heróis, episódios, etc. e se sentem em segurança do pertencimento de um grupo. Tem até mais força no input, recebendo deles próprios mais força pra poder continuar como fãs. Um fã sozinho fica perdido, porque sofre muito preconceito, principalmente no Brasil, onde se diz que o desenho animado , história em quadrinhos é coisa de criança. Os fás de anime são tachados de infantis, imaturos, o que não é verdade. No Japão, o desenho animado não é só para crianças.
Por que você usa a expressão “lixo cultural” para designar a cultura pop ?
Porque cultura pop ainda é considerada lixo cultural. Sempre quando me apresento como especialista em HQ, me perguntam: não podia ser algo mais elevado ? Quando eu falo em eventos, a minha pesquisa é considerada “diversão”. Mas eu acho que o quadrinho é poderoso, é educativo, a criança quebra muito a cabeça pra pode rler uma imagem complexa, pra entender todos os signos da história. Mesmo sem saber ler, ela decodifica os signos – coração quer dizer amor, gotinhas querem dizer suor, etc. Seguindo um mangá, a criança segue uma história em linguagem descontinua (quadrinhos) numa linguagem contínua (narrativa). E o mais importante do mangá é o que está entre um quadrinho e outro. É aí que a criança desenvolve a imaginação. As pessoas não sabem ler imagens.
E a gente vive numa era de imagens.
Há tanta exposição de imagens que as pessoas não lêem mais. Não presta atenção, o uso das cores nas imagens, os detalhes, etc. O mangá anime aprofunda a cultura visual. A melhor maneira de reforçar a cultura visual é fazer um desenho, criar um personagem, uma história. Assim elas se tornam heroínas. Por isso eu falo para os pais e professores não usar o mangá anime como inimigo, mas como aliado.Se proíbem é porque não conhecem a linguagem e o poder dos quadrinhos. Não existe coisa melhor para uma criança do que ela entrar no mundo da fantasia. Pq a criança sabe diferenciar o que é realidade e fantasia. N é todo mundo que vai por uma capa de superman e sair na janela voando. Se uma criança fizer isso, ela é doente, não os quadrinhos. Não é porque joga game, vê desenho animado, lê quadrinhos que a criança se torna violenta ou anormal.
Marilia Kubota é editora do JORNAL MEMAI, mestre em estudos literários (UFPR) e organizadora do livro “Retratos Japoneses no Brasil – Literatura Mestiça” (2010).
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